Marcha dos 4 milhões, em Paris, envergonha a América Latina em geral e o Brasil em particular. Prova que, tecnicamente, abandonamos a cidadania há muito.
Magro e grave, outro dia um comerciante dos Jardins comentava: “Em São Paulo se mata apenas para ouvir o barulho do tombo. Mas deixa pra lá, sempre foi assim”. No Brasil os roubos e matanças já se incorporarem ao nosso biótipo: saem pela urina, e sem pedrinhas machucantes.
Há finais de semana que se matam 50 pessoas em São Paulo. Homicídios mataram 56 mil brasileiros em 2013. Qual o hino oficial da Irlanda? É praticamente a balada Sunday Bloody Sunday, do U2. Sabe quantos morreram no Domingo Sangrento em janeiro de 1972? Quatorze ativistas. Quantos morreram no nosso Carandiru? 111. Os números brutais de matanças no Brasil não mais nos emocionam.
O brasileiro incorporou à sua sub-rotina se acostumar com mortes a quilo e roubos a tonelada. Uma vez em Israel um ministro caiu por desviar seis mil dólares. Todos seguem firmes com o Petrolão e Dilma vai muito bem obrigado.
No livro Os Sertões, de Euclydes da Cunha, o brasileiro é descrito como o Hércules-Quasímodo: “falta-lhe a aparência impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente”.
Somos Hércules porque ainda sobrevivemos nessa pré-coerência estilizada que é a cidadania brasileira.
Os 4 milhões de pessoas nas ruas não protestaram apenas contra as mortes. Protestaram contra o estado de coisas que o terror traz.
Sabem o que é o terror? É o medo sem objeto. Por isso a Bruxa de Blair fez tanto sucesso: não eram tubarões ou Jasons ou Chucks no ataque: eram ventos, galhinhos. Era o Nada. Por isso Heidegger e Sartre falavam que questão mais fundamental da filosofia do século 20 era o Nada.
A França não quer viver no estado do Nada. Nesse sábado os policiais franceses foram orientados a retirarem das redes sociais as suas foros porque “o ataque terrorista pode vir de qualquer canto”. Ninguém suporta o terror sem objeto.
Isso serve para os dois lados. Depois do ataque às torres gêmeas, o ex-presidente George W. Bush mostrava as fotos dos 19 terroristas. Depois, proibiu a divulgação: saía de cena o “terrorista” e entrava o “terrorismo” –o que justificava combatê-lo no país que interessasse a Bush. Foi assim que se forjou a invasão do Iraque.
O cineasta Alfred Hitchcock admitia que “não existe terror no estrondo, apenas na antecipação dele”. O ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, gostava de dizer que “as pessoas reagem ao medo, não ao amor”. E Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, orgulhava-se de ter detectado que “falamos sempre não para dizer algo, mas para obter algum efeito”.
O terrorismo vive de efeitos. Quer se fazer presente mesmo onde jamais vai estar.
A França não protesta apenas contra as mortes: mas contra um estado de coisas no ar.
Mas o brasileiro jamais vai conhecer esse tipo de sensibilidade: Hércules-Quasímodo não tem tempo para essas coisas, afinal…
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