Relator de ação proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, o ministro Marco Aurélio Mello votou a favor da descriminalização do aborto de fetos sem cérebro em julgamento nesta quarta-feira (11) no Supremo Tribunal Federal. O ministro defendeu que é inconstitucional a interpretação segundo a qual interromper a gravidez de feto anencéfalo é crime previsto no Código Penal.
A entidade pede que o Supremo interprete o Código Penal para permitir que, em caso de anencefalia, a mulher possa escolher interromper a gravidez. Por lei, o aborto é crime em todos os casos, exceto se houver estupro ou risco de morte da mãe.
“Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”, afirmou o ministro.
O ministro afirmou que, com base na liberação do aborto de fetos “viáveis” em casos de estupro, não se pode deixar de “proteger a saúde mental” da mulher grávida de um feto anencéfalo.
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“Parece-me lógico que o feto sem potencialidade de vida não pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a vida”, afirmou Marco Aurélio Mello.
O ministro também afirmou que a decisão "cabe à mulher e não ao Estado". "Cumpre à mulher, em seu ritmo, no exercício do direito à privacidade, sem temor de reprimenda, voltar-se para si mesma, refletir sobre as próprias concepções e avaliar se quer ou não levar a decisão adiante. Ao Estado não é dado intrometer-se. Ao Estado compete apenas se incumbir do dever de informar e prestar apoio médico e psicológico a paciente antes de depois da decisão, seja ela qual for."
A decisão do Supremo sobre o assunto terá de ser aplicada pelas demais instâncias da Justiça em casos semelhantes. Como o texto não trata de anencefalia, há anos juízes e tribunais têm decidido caso a caso sobre a interrupção da gravidez – em muitos deles, concedendo os pedidos. Em outros, a ação perdeu o objeto em razão da demora – quando o processo chegava às mãos do juiz, o parto já havia ocorrido.
Religião x Ciência
Em seu voto, o ministro afirmou que no Brasil já foram proferidas cerca de 3 mil autorizações judiciais para a interrupção da gravidez de fetos sem cérebro. Ele citou ainda dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), referentes ao período entre 1993 e 1998, segundo os quais o Brasil é o quarto país no mundo em incidência de anencefalia fetal, atrás de Chile, México e Paraguai. Segundo o ministro, um a cada mil nascimentos no Brasil é de feto sem cérebro.
Marco Aurélio ressaltou a necessidade de separação entre o Estado e as crenças religiosas quando se trata de direitos dos cidadãos. Para o ministro, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não pode ser analisada sob o foco de orientações religiosas.
“Concepções religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa ou a ausência dela serve precipuamente para ditar a vida privada do indivíduo que a possui. Paixões religiosas de toda a ordem hão de ser colocadas à parte das decisões do estado”, afirmou o relator.
Mello citou frase do Padre Antônio Vieira, ao falar da importância dos avanços da sociedade “no campo do pensar”. “E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e todas as coisas desde o seu princípio nasceram juntas com o tempo, por isso nem ele nem elas podem parar um momento, mas com perpétuo moto, e revolução insuperável passar, e ir passando sempre", citou o ministro.
Boa parte do voto do ministro foi dedicada à questões científicas apresentadas por especialistas ao Supremo durante audiência pública realizada em 2008. Marco Aurélio afirmou que, do ponto de vista técnico, especialistas consideram o feto sem cérebro “um natimorto neurológico”. Para ele, não é possível falar em deficiência, pois não há expectativa de vida do feto fora do útero da mãe.
Com base na mesma ideia, Mello também afastou o argumento de que o aborto do anencéfalo seria eugenia, prática usada por nazistas para evitar o nascimento de crianças com deficiências.
“O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida”, disse o ministro.
Ele lembrou ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem condições técnicas de fazer o diagnóstico “seguro” da anencefalia, possível por meio de ultrassonografia a partir da 12ª semana de gravidez.
Depoimentos
As conseqüências psiquiátricas da obrigação de levar ao fim a gravidez de feto sem cérebro foram relatadas pelo ministro. Mello leu em plenário depoimentos de mulheres que contaram sobre momentos de angústia e depressão dela e da família.
Segundo ele, o sofrimento imposto pelo Estado ao proibir a interrupção da gravidez de anencéfalo é considerado por especialistas como forma de “tortura” e pode levar a quadro psiquiátrico grave de depressão, transtorno, estresse pós-traumático e tentativa de suicídio.
“Enquanto numa gestação normal são nove meses de acompanhamento com a predominância do amor, quando com a alteração estética é suplantada pela alegre expectativa do nascimento da criança. Na gestação do feto anencéfalo, reinam sentimentos mórbidos de dor, tristeza, desespero, angústia e luto dada a certeza do óbito”, disso ministro
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